Carmem. A minha Carmem morreu aos 88 anos. Única, insubstituível e inesquecível.
Carmem seguia a regra número 1 entre as socialites, desde que o termo foi introduzido na língua inglesa em 1928 pela revista americana “Time”, é a seguinte: ninguém se apresenta como socialite; só os terceiros que podem fazê-lo. Socialites de verdade — como foi Carmen, uma das melhores da espécie — recusam o rótulo. Até porque elas não acham que têm a vida mansa; pertencem a um tempo em que não existiam bufês, decoradores, floristas, cerimonialistas — tudo era feito em casa, principalmente os jantares sentados para 150 pessoas pedidos de última hora pelos maridos, de olho em sacramentar algum negócio.
Paulista de Pirajuí, neta de barão, Carmen Terezinha Solbiati já era Carmen antes de se tornar Mayrink Veiga. O Rio, então capital, a adotou imediatamente. Em 1955, no jornal “A última hora”, o poeta Carlos Drummond de Andrade lhe dedicou os seguintes versos: “A noite é gozo mas aberta em bares/ E a penumbra requinta os mais vulgares/ Se o calor a uns enerva e outros abate/ É um consolo a Terezinha Solbiati/ que São Paulo emprestou — não devolvemos/ Vote o Congresso, urgente, o que escrevemos”.
Já garota, foi na contramão de um mundo platinado que seguia as femmes fatales hollywoodianas: loura de nascença, pintou a vasta cabeleira de um negro graúna, e teve a sabedoria de nunca ter operado o nariz perfeitamente imperfeito. Seu début nas colunas sociais se deu aos 13 anos, quando um fotógrafo flagrou aquela beleza descomunal de olhos amendoados, a bordo de um maiô, numa praia no Guarujá. O pai ralhou, mas, a partir de então, passou a recolher, orgulhoso, todos os recortes que saíam sobre a filha. Ela virou a coqueluche do soçaite tropical.
Não por acaso, nos anos 1950, quando Assis Chateaubriand resolveu promover o algodão brasileiro em duas festas impactantes, uma no Palazzo Grassi, em Veneza, outra no Castelo de Coberville, na França, Carmen esteve entre as convidadas. Na volta, casou-se com o empresário Antônio Alfredo “Tony” Mayrink Veiga, herdeiro de um império que, desde a Guerra do Paraguai, em 1864, fornecia equipamentos, munição e armamentos para as Forças Armadas brasileiras. A holding ia da mineração às finanças, passando pelas comunicações, com a Rádio Mayrink Veiga.
Ao lado de Tereza Souza Campos e Lourdes Catão, Carmen formou o triunvirato das listas das mais elegantes do Brasil. Elas ocupavam o lugar que hoje têm as blogueiras de moda; todo mundo as copiava nas revistas de figurino, só que elas não recebiam nada para vestir as grifes. Pelo contrário, pagavam, e muito caro.
Desde pequena, Carmen colocou uma coisa na cabeça: morreria magra. Aos 40 anos, procurou um endocrinologista para traçar um plano para alcançar o objetivo. Dizia que era por uma razão de harmonia física, mas certa vez me confessou que tinha tanto horror a provar vestidos, que decidiu não engordar um só grama para ser poupada do suplício. Mas adorava uma empadinha.
A única mulher no mundo três vezes capa da revista “Town & Country”
Um de seus estilistas preferidos, Guilherme Guimarães, lhe mandava os croquis por fax, ela aprovava, depositava a quantia e tudo resolvido. Lá fora, vestia-se na alta-costura de Yves Saint Laurent (um grande amigo; ela é a única brasileira a figurar na biografia oficial do mestre), Hubert de Givenchy e Valentino. Não fazia, no entanto, a linha burguesa rica; gostava de fendas, decotes, joias espetaculares para usar de dia. Alta e altiva, não precisava de saltos para estar por cima — os seus jamais passavam de seis centímetros. Carmen, aliás, não entrou para a lista das mais bem-vestidas do mundo em 1981, como li por aí. Naquele ano, ela teve o nome inscrito no “Hall da Fama” da publicação, honraria concedida às pouquíssimas pessoas que foram eleitas mais de três vezes, ao lado da duquesa de Alba, de Coco Chanel, de Audrey Hepburn e da rainha da Inglaterra.
Mas, afinal, por que Carmen foi tão inimitável, a ponto de ter sido a única mulher no mundo três vezes capa da revista “Town & Country”, a bíblia da sociedade americana, e ter sido retratada por nomes como Francesco Scavullo, Richard Avedon, Andy Warhol e Mario Testino? Ela encarnou, como poucas, a transição do café soçaite para o jet-set, da elite que se limitava ao próprio círculo para a que cultivava outros horizontes.
Era a época de grandes milionários latino-americanos que se propunham a jorrar suas fortunas na Europa. Falo do mexicano Charles de Beistegui, que deu o famoso baile à fantasia no Palazzo Labia de Veneza em 1951, do decorador cubano Emilio Terry, dos chilenos Arturo Lopez-Willshaw, rei do estanho, e George de la Cuevas de Bustillo y Terrar, marquês de Cuevas. As mulheres do lado de cá do Equador também impressionavam por sua elegância e pelas somas colossais que gastavam nas maisons de alta-costura. Até então esnobadas e apelidadas de rastacueras (uma corruptela para arrasta-couro, ou seja, sem pedigree), elas entenderam que, para se dar bem no soçaite europeu, deveriam se comportar como inglesas até mais do que as próprias inglesas. Com a famosa simpatia como arma, conseguiram. Entre elas, estavam Natividad Terry y Dórticos, mãe do príncipe Jean-Louis de Faucigny-Lucinge e avó da carioca Georgina Brandolini; a herdeira do estanho boliviano Maria Cristina Patiño, que se tornou nobre ao se casar com o príncipe Marc de Beauvau-Craon em 1952; a boliviana Aramayo que se casou com o marquês d’Arcangues; e, finalmente, as brasileiras Perla Lucena, Aimée de Heeren e... Carmen.
Com o desenvolvimento da aviação comercial, que tornou mais fáceis os deslocamentos intercontinentais, o colunista social americano Igor Cassini cunhou em 1952 a expressão “jet-set” para ilustrar o primeiro voo comercial com motores a jato, da companhia British Overseas Airways Corporation (BOAC). Como os assentos eram caríssimos, só a elite abastada poderia viajar nele. Novas fronteiras começaram a ser desbravadas: as ilhas gregas sob curadoria de Aristóteles Onassis; Capri com Valentino e Jackie O.; Mônaco com o jovem casal Rainier e Grace Kelly; Tanger com Barbara Hutton; Marrakech com Talitha Getty; polo em Deauville com Porfirio Rubirosa; St. Moritz com o xá da Pérsia; e o carnaval no nosso Rio com Jorginho Guinle — Carmen esteve em todas e foi a grande anfitriã dessa turma na cidade.
Balneários inteiros eram inventados por empreendedores, de carona na praticidade aérea: na Sardenha, o Aga Khan, chefe espiritual dos ismaelitas, fundou a cidade-fantasia de Porto Cervo; na Espanha, Alfonso de Hohenlohe criou Marbella. Nos anos 70, uma outra invenção, as boates, deixaram esse trânsito ainda mais intenso e excitante: Baia degli Angeli em Gabicce Mare, na Itália, Studio 54 em Nova York, e Régine’s em Paris e outras 14 cidades espalhadas pelo mundo (inclusive Rio, São Paulo e Salvador). As turmas eram sempre as mesmas, seguiam um calendário festivo e sazonal, mas também abriam os braços para roqueiros, atores, musas controversas, conquanto fossem louquíssimos e estilosos.
Fascinada por arte, Carmen foi amiga de Di Cavalcanti, Pedro Leitão e Portinari, que pintou um retrato seu em 1959. Em sua coleção, destacavam-se obras de Milton Dacosta, Lasar Segall, Agostinelli e quadros da Dinastia Qing. Outra paixão eram os felinos: os gatos de estimação (muitos dos quais adotados na rua e que ganhavam festa de aniversário) e as estampas de leopardo que decoravam o lavabo.
Uma mulher que sabia falar com todas as classes sociais
Carmen era uma anfitriã irretocável, do tipo que anotava todas as louças e placements de seus jantares, bem como os vestidos que usava, para não os repetir. E também tirana: com horror a atrasos, marcava os jantares em casa com horários de embaixada, 20h35, 21h17. Nunca bebeu, nunca fumou, nunca tomou sol. Tinha obsessão por não passar do ponto — ela era o ponto. Os tempos eram outros e não havia Greenpeace, Peta ou aquecimento global; ela e Tony participavam de caçadas na Escócia, na França e na Áustria; aos safáris do marido pela África, a água mineral chegava num bimotor que vinha de Nairóbi. Eram como água e óleo: ela era rueira, social, mundana; ele, o precursor do estilo low-profile. Mas ficaram casados por 60 anos, até que, no ano passado, Tony morreu.
Tiveram dois filhos: Antenor, “O” gato do Rio de Janeiro no final dos anos 80, e Antonia, hoje atriz das novelas globais. O casamento de Antonia com o empresário Guilherme Frering foi o grande happening da cidade em 1985. O véu foi comprado por Carmen em Bruxelas quando a filha tinha apenas nove anos. Givenchy quis fazer o vestido, mas Antonia decidiu desenhá-lo sozinha e o mandou executar na Maison Colette — quem provava o modelito era Carmen, detalhe. A lua de mel durou meses e terminou em Nova York; Carmen, a mulher que mais viajou de Concorde no mundo, decolou de Paris para encontrar os recém-casados.
Nove anos depois, o script glamoroso que ela escreveu para sua vida desandou: a Mayrink Veiga sucumbiu aos efeitos do Plano Collor e começou a se afundar em dívidas. Tony e Carmen tiveram de se mudar de Paris, onde viveram por 23 anos, e vieram os arrestos de bens e os protestos em cartórios. O mítico Rolls-Royce Silver Cloud comprado em 1951 teve que ser vendido. Dois leilões de suas obras de arte ajudaram o casal a diminuir a dívida. Entrou para a história uma reportagem de TV que seguiu Carmen até um depoimento no Tribunal de Justiça — uma execração pública que hoje, em tempos de Lava-Jato, seria fichinha. A jornalista lhe perguntou como ela se sentiu diante do juiz. “Com frio, minha filha. O ar-condicionado aqui é muito forte”. Carmen, definitivamente, não existia.
Começava aí uma nova fase: ela arregaçou as mangas e pôs a mão na massa, menos por necessidade, mais pelo desejo de reinvenção. O Brasil vivia a euforia da estabilização do Plano Real e uma classe considerável emergia, sedenta por orientação em seus novos hábitos de consumo. Ela lançou um best-seller de dicas, “ABC de Carmen”, assinou uma edição comentada do “Livro completo de etiqueta de Amy Vanderbilt”, a bíblia mundial do assunto, e tirava dúvidas dos leitores numa coluna semanal no jornal “O Dia”. Dava autógrafos nas ruas, uma e outra declarações politicamente incorretas em entrevistas (mas aprendeu logo; era inteligentíssima), ampliou sua audiência. Sua editora na época, Ruth de Aquino, relembra esse período jornalístico:
— Era impressionante como ela sabia falar com todas as classes sociais. As presas do Talavera Bruce lhe mandavam cartas pedindo orientações sobre como deveriam se vestir no tribunal, e ela respondia com o mesmo carinho.
Nos últimos anos, sofria com uma doença rara que os médicos demoraram a identificar, a paraparesia espástica tropical. Por causa dela, locomovia-se em cadeira de rodas e se tornou uma ativista pela causa dos portadores de deficiência. Graças a sua influência, conseguiu que o Copacabana Palace e o Theatro Municipal instalassem rampas e elevadores adaptados, e a direção dos dois prédios históricos a convidou para inaugurar as obras. Doou também 200 peças de seu acervo de alta-costura ao Instituto Zuzu Angel, para que estudantes pudessem decifrar a modelagem. Em 2003, fez uma exposição de 62 modelitos na Casa Julieta de Serpa, que também instalou um elevador em sua homenagem. Devota de Santa Terezinha, não se permitia reclamar de sua condição: “Tive uma vida muito boa; drama são as mulheres que levam os filhos para a escola em meio a tiroteio”, declarou-me em nossa última entrevista.
Carmen, a grande notável.
2 comentários:
Excelente Kika!!!
Talvez a última grande dama da sociedade brasileira!
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